É sabido que o instituto da recuperação judicial da empresa, o próprio título o diz, é próprio e privativo do empresário pessoa natural ou da sociedade empresarial, regulado que está na Lei nº. 11.101/2005. Todavia, fazendo uma interpretação teleológica da lei, em acertada decisão, houve a ínclita Juíza Titular da 5ª Vara Empresarial da Comarca do Rio de Janeiro – RJ, Maria da Penha Nobre Mauro, por deferir o processamento da ação de recuperação judicial ajuizada pelo Complexo Universitário Cândido Mendes, por intermédio da ‘Associação Sociedade Brasileira de Instrução’ e do ‘Instituto Cândido Mendes’, que embora não sejam do ponto de vista formal (legal) sociedades empresárias, em face de seu conteúdo econômico, foram reconhecidas, para efeito de sua ação de recuperação judicial, como empresas.

Trata-se de importantíssimo precedente judicial, a reconhecer que a empresa, antes de ser uma questão de forma, há de ser uma questão de conteúdo. No que interessa o presente texto, colhe-se daquela respeitável decisão , em sua fundamentação, exatamente o seguinte: “O busílis não está, pois, na natureza jurídica do agente econômico, mas no impacto da atividade econômica por ele empreendida, na economia e na sociedade. Ainda que formalmente registrada como associação civil, a entidade de ensino, à toda evidência, desempenha atividade econômica lucrativa, que repercute jurídica e economicamente. A concepção moderna da atividade empresária se afasta do formalismo para alcançar a autêntica natureza da atividade objetivamente considerada. Ainda que no aspecto formal a mantenedora da Universidade Cândido Mendes – ASBI – se apresente como associação civil, de fato, ela substancialmente desempenha verdadeira atividade empresária, a teor do art. 966 do Código Civil, pois realiza atividade econômica organizada para a produção ou circulação de bens ou serviços, gera empregos e arrecadação para o Estado, revestindo-se de genuína função social.″

Vê-se, pois, que adotando a concepção moderna da atividade empresária, o decisum em comento se afasta daquele ultrapassado formalismo, preso à lei, à forma, para alcançar a autêntica natureza da atividade objetivamente considerada, o seu conteúdo.

Avançando em sua fundamentação e discorrendo sobre a Teoria da Empresa adotada pelo Código Civil de Miguel Reale, colhe-se também da r. decisão que deferiu o processamento da ação de recuperação judicial do Complexo Universitário Cândido Mendes que: ″O Código Civil de 2002 adotou a Teoria da Empresa, que se concentra não no tipo de ato mercantil praticado, mas no modo pelo qual a atividade é exercida. Tanto assim o é que, na Exposição de Motivos, a empresa está considerada como ′unidade econômica de produção ou atividade econômica unitariamente estruturada para a produção ou circulação de bens ou serviços′. A atividade empresarial consiste numa ′série de atos e operações que se entrelaçam (coordenados) e que se sucedem no tempo (continuidade), possuindo como ponto comum a finalidade ou o escopo de servir à satisfação das necessidades de mercado′ (′A Teoria Jurídica da Empresa no Direito Brasileiro′, Quartier Latin, Ana Lúcia Alves Costa Arduin).A caracterização de empresa, pois, deve ser considerada sob o perfil corporativo ou institucional, organizado com o escopo de obter o melhor resultado econômico, produtivo e socialmente útil. Atividade de caráter profissional e organizada para a produção ou circulação de riquezas, bens ou serviços, visando resultados lucrativos. A existência da atividade empresária, vale dizer, da empresa, não deve ser considerada simplesmente sob o aspecto formal, mas fático. Uma compreensão que se deflui, inclusive, do próprio Código Civil, o qual, no art. 982, considera empresária a sociedade que tem por objeto o exercício de atividade própria de empresário sujeito a registro. Não se pode olvidar que a dinâmica dos fatos, a evolução do direito comercial e do direito econômico, demandam uma nova forma de reflexão″.

Bebendo na melhor das fontes, a r. decisão em análise faz uso e se vê amparada por uma vasta gama de exuberantes pareceres, que estão a sustentar a tese. Neste tocante, colaciona-se a valiosa advertência do Professor Sérgio Campinho, assim dizente: ″… deve-se aplicar à Consulente o remédio da recuperação judicial para que possa superar o seu estado de crise econômico-financeira, cuja finalidade suprema é a da preservação da atividade econômica, dos postos de trabalho e dos interesses dos credores. Não foi o instituto preconizado para preservar o direito à partilha de lucros, mas sim para permitir a manutenção da fonte produtora de bens, serviços e riquezas, sua função social e o estimulo à atividade econômica (artigo 47 da Lei n⁰. 11.101/2005). Há, na hipótese aventada, a mesma identidade de substância jurídica e os fatos de igual natureza devem ser regulados de modo idêntico ou semelhante″.

Neste mesmo sentido, também comparece o parecer de lavra do eminente jurista Manoel Justino Bezerra Filho, ao dizer que ″o princípio do art. 47 é a preservação do ′…devedor, a fim de permitir a manutenção da fonte produtora, do emprego dos trabalhadores e dos interesses dos credores, promovendo assim a preservação da empresa, sua função social e o estimulo à atividade econômica′. O art. 47 não fala em ′sociedade empresária′, termo que apenas é encontrado no art. 1⁰; o art. 47 fala apenas em ′fonte produtora′ e em ′empresa′.″

Prosseguindo em seu raciocínio e aplicando à espécie a desejável interpretação teleológica do arcabouço legal, a decisão em comento acolhe e abraça, por inteiro, a tese defendida no presente texto, de que a empresa é uma questão de conteúdo, antes ser uma questão de continente, ao assim dispor: ″A interpretação das normas legais ao caso concreto exige um exercício teleológico. O pedido de recuperação judicial ora deduzido desafia uma ponderação de valências acerca da repercussão do deferimento ou do indeferimento para a coletividade. O que haverá de prevalecer: a forma ou a substância? Por certo que a substância!”.

É preciso, portanto, analisar sobre a relevância do conteúdo sobre o continente, e vem do Poder Judiciário brasileiro essa salutar e recente decisão no âmbito da justiça do Estado do Rio de Janeiro no processo apontado. Trata-se de importante e alvissareiro precedente, que vai de encontro ao princípio da função social da empresa, consagrado na Constituição da República de 1.988, como decorrência dos artigos 5º, inciso XXIII , e 170, inciso III , ambos protetores da função social da propriedade.

Ainda sobre a função social da empresa, de se visitar a doutrina de Fábio Ulhoa Coelho, assim dizente: ″… esse princípio da função social, por certo, não é estranho a nenhuma das formas de propriedade, mormente a empresária. A propriedade que recai sobre bens de produção organizados num estabelecimento empresarial deve atender à função social, tanto como qualquer outra, por força do comando constitucional″.

Finalmente, de se registar que além de coadunar com o comando constitucional citado, a decisão em análise também dá concretude ao princípio norteador da Lei nº. 11.101/2005, Lei de Falências e Recuperações Judiciais, encontrável em seu artigo 47, que, ao criar a ação nova de recuperação judicial, atribuiu como sua finalidade precípua “a manutenção da fonte produtora, do emprego dos trabalhadores e dos interesses dos credores, promovendo, assim, a preservação da empresa, sua função social e o estímulo à atividade econômica”.

Trata-se, portanto, de precedente digno de aplausos e que indica o caminho a ser trilhado.

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1-Processo n⁰. 0093754-90.2020.8.19.0001, em tramite perante a 5ª Vara Empresarial da Comarca do Rio de Janeiro – RJ.
2-Decisão proferida em data de 17.05.2020, encontrável às fls. 7.053/7.062 do Processo n⁰. 0093754-90.2020.8.19.0001.
3-O artigo 5º, inciso XXIII, encontra-se disposto no Título II, Dos Direitos e Garantias Fundamentais, Capítulo I, Dos Direitos e Deveres Individuais e Coletivos, da Constituição da República, e trata-se de cláusula pétrea determinando que a propriedade atenderá à sua função social.
4-Já o artigo 170, inciso III, encontra-se no Título VII, Da Ordem Econômica e Financeira, Capítulo I, Dos Princípios Gerais da Atividade Econômica, do texto constitucional, e, por sua vez, dispõe que a atividade econômica observará o princípio da função social da propriedade.
5-COELHO, Fábio Ulhoa. Parecer (inédito) solicitado pela Pérsico Pizzamiglio S. A., p. 18.


Max Roberto de Souza e Silva

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